por Miguel
Martins
Carta
Capital
Três
desembargadores, uma dosimetria da pena. O julgamento de Lula em segunda
instância não apenas confirmou a condenação de Lula pelo juiz Sergio Moro pelos
crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mas ampliou a pena do
petista para 12 anos e 1 mês em regime fechado. Embora fosse esperada a
confirmação da sentença do juiz responsável pela Lava Jato em Curitiba,
impressionou a unanimidade dos desembargadores na hora de aplicar uma punição
mais dura ao ex-presidente.
Como não
houve divergência, Lula fica impedido de apresentar os chamados embargos
infringentes, o que levaria o processo a se arrastar por mais tempo na segunda
instância e daria fôlego para o ex-presidente disputar a eleição ou até mesmo
protelar sua prisão. Os desembargadores poderiam obter o mesmo resultado caso
confirmassem a pena imposta por Moro, de 9 anos e meio de prisão. O fato de
eles terem cravado uma mesma punição ainda mais dura para o petista parece
indicar que houve acerto prévio para garantir uma unanimidade com o objetivo de
impedir o recurso de Lula.
A análise é
do ex-juiz federal Flávio Dino, governador do Maranhão pelo PCdoB,
ex-presidente da Associação Nacional dos Juízes Federais (Ajufe) e
ex-secretário-geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Na entrevista a
seguir, Flávio Dino afirma não acreditar que os tribunais superiores
permitirão uma eventual prisão de Lula e critica o corporativismo dos
desembargadores durante o julgamento. “Os três julgadores estavam,
aparentemente, mais preocupados em garantir a autoridade, a respeitabilidade e
a honra da Justiça do que propriamente julgar o caso.”
CartaCapital:
A unanimidade no julgamento de Lula e a coincidência entre as penas impostas
pelos desembargadores o surpreendeu?
Flávio Dino: Foram realmente duas surpresas. Primeiro, sempre achei que jamais
houve prova de crime algum. Mas, na pior da hipóteses, eu imaginava que eles
iriam retirar a condenação por lavagem de dinheiro, porque é sui generis
considerar que a própria OAS, detentora do imóvel, é laranja dela mesma. É algo
que no Direito se chama leading case, é um caso único no direito mundial.
Qualquer
pessoa com o mínimo de experiência forense sabe que em um julgamento dessa
natureza só há unanimidade da dosimetria caso ela seja previamente combinada.
Acho que houve acerto prévio, pois é atípico esse nível de concordância, a não
ser que antes haja um ajuste. Claramente, houve um ajuste para evitar os
embargos infringentes. O que torna ainda mais frágil a punição de quem julgou,
da turma do tribunal.
CC: O senhor
afirmou em sua rede social que o julgamento foi repleto de “defesas
corporativas”. Por quê?
FD: O
julgamento foi aberto com um discurso, com o relator dizendo que não haveria
julgamento da vida pregressa de Lula. Quando se soma a postura, a atitude, a
entonação, a impostação, vemos que na verdade havia um julgamento acima do
próprio caso, que era o julgamento da honra da Justiça Federal. Os três
julgadores estavam, aparentemente, mais preocupados em garantir a autoridade, a
respeitabilidade e a honra da Justiça do que propriamente julgar o caso. O caso
em si foi julgado muito precariamente, com base em inferências, em
considerações diversas que cabem bem em um discurso político, mas não em um
acórdão.
Eles
invocaram, por exemplo, o julgamento do "mensalão". O que o
"mensalão" tem a ver com isso? Falaram do José Dirceu, o que ele tem
a ver com os fatos em discussão? Fizeram considerações sobre como se constrói
maioria no Congresso Nacional. E por aí vai. Ao contrário do que foi dito no
início, foi um julgamento abstrato, inquisitorial de um pecador, e não o
julgamento de um acusado de acordo com o processo penal contemporâneo com base
em determinado crime e suas provas. É um processo que começou mal, a condução
na 1ª instância já foi muito ruim, desde aquela célebre condução coercitiva de
Lula, e que, infelizmente, o tribunal resolveu dar continuidade a isso. Foi
muito ruim, tanto na forma quanto no conteúdo. Acho uma peça jurídica muito
frágil.
CC: O senhor
acha que os tribunais superiores aceitarão esse acórdão?
FD: Acho que
será revertido, mas não sei em que momento. Provavelmente, nos próximos anos
eles vão considerar que neste caso não há prova de corrupção passiva e de
lavagem de dinheiro. O crime de lavagem apontado é esdrúxulo. É o único caso de
ocultação e dissimulação em que a propriedade do bem continuou com o próprio
detentor (OAS), que seria laranja dele mesmo. É um negócio surrealista.
No caso da
corrupção passiva, eles dizem que não precisa de ato de ofício. OK, mas é
necessário que você demonstre que a suposta vantagem tem correlação com o
exercício da função. No julgamento, o que definiu essa correlação são
considerações meramente genéricas, do tipo: ele nomeou os diretores da
Petrobras. É típico de quem não tem noção do que é governar uma estrutura
complexa. Imagina se um governador do Estado ou um presidente vai ter ciência
cotidiana e exata de todos os atos de gestão praticados em todos os órgãos de
governo.
Isso é
inexigível até de um juiz em sua vara. É impossível cobrar de um desembargador
que ele conheça todos os atos de seu gabinete, do ponto de vista jurídico.
Imagina se é possível cobrar isso de alguém que gerencia um país de mais de 200
milhões de habitantes. Não se pode presumir, é preciso provar.
Voltamos
àquele ponto da má interpretação da Teoria do Domínio do Fato, que novamente
surge nessa construção, segundo o qual ela é igual à chamada responsabilidade
penal objetiva. Como se nomear desse a ele obrigação de saber de tudo.
CC: Os
desembargadores buscaram negar que estivessem utilizando a Teoria do Domínio do
Fato, Leandro Paulsen falou em "crimes específicos".
FD: Na
verdade, eles julgaram com base em uma condenação prévia. Julgaram com base em
um desígnio. Eles tinham de confirmar a sentença do Moro, porque se não
confirmassem, a imagem da Justiça Federal ficaria maculada. Esse foi o
fundamento. O resto foi mero exercício vazio de retórica. Você espreme esse
julgamento e não encontra nada. Quem estava em julgamento não era nem a Justiça
nem o juiz Moro. Era um réu, acusado de um determinado crime. Aquilo não fica
bem. Foi um julgamento realmente surpreendente, bem pior do que eu imaginava.
CC: O senhor
acredita que o juiz Moro decretará a prisão do Lula?
FD: A esta
altura, diante da continuidade de disparates jurídicos, a prudência recomenda
que se considera ser bem plausível que isso aconteça, que haja essa vontade.
Não acredito que o STJ e o Supremo permitam isso. Mas que a vontade de prender
está clara, sim, está clara. É um julgamento que cumpre aquilo que o próprio
TRF4 criou. É bom lembrar que o tribunal, ao apreciar aquele vazamento de
escutas telefônicas de advogados, criou uma categoria chamada "direito
excepcional". O que a 8ª turma fez foi aplicar esse tal direito excepcional
da Lava Jato. Só que isso se choca com a Constituição, esse é o problema.
CC: Como o
campo progressista e o PCdoB devem enxergar as consequências eleitorais dessa
decisão?
FD:
Partidariamente, temos uma definição pela pré-candidatura de Manuela D'Ávila, e
eu sou vinculado a essa orientação. Mas minha opinião de que Lula deve, sim,
continuar sua candidatura. É uma exigência democrática. Estamos diante de uma
aplicação casuística do direito, o conjunto da obra mostra isso. E isso leva à
necessidade de uma atitude política coerente e proporcional à dimensão desse
casuísmo. A atitude mais recomendável é ele manter mesmo a candidatura.
CC: O senhor
acha que o impasse sobre a candidatura de Lula vai ser um tema central nas
disputas estaduais?
FD: É, sem
dúvida, um elemento poderoso. Não só no Nordeste, mas todo o processo político
do País entra em uma era de brutal incerteza. O candidato líder na pesquisas
está na contingência de não poder disputar as eleições. Ninguém sabe se ele
poderá concorrer até o final, pois a definição disto só ocorrerá no fim de
agosto. Logo, o processo político vai ficar suspenso, haverá uma incerteza
muito grande.
A sociedade
vai ficar muito polarizada, teremos um País muito fraturado. Isso já ocorre
desde 2013, quando começou esse processo de fratura, que se aprofundou com o
julgamento de Lula. Há uma clivagem muito aguda. Somente eleições acima de
qualquer suspeita podem colar o que está fraturado. A se confirmar o curso das
coisas, teremos uma continuidade desse quadro. É muito ruim para um país viver
esse nível de ruptura das regras do processo democrático.